terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Morgan Freethinker

eu gosto muito dos programas de divulgação científica do Morgan Freeman, mas sempre com aquela ponta de irritação tolerante, ao ouvi-lo começar o episódio com o dado adquirido que o livro de Génesis foi escrito em Jerusalém há 2500 anos atrás. Logo na altura em que tenho andado a ler o segundo volume do Evidência Que Exige Um Veredicto, que defende a autoria mosaica do Pentateuco, ou seja, que foi Moisés a escrever os primeiros cinco livros da Bíblia, e como tal, há bem mais tempo do que uns meros 2500 anos.
Isso, e a derivazinha New Age que o estava a impedir de compreender o significado das palavras de uma senhora hinduísta, terminando-lhe as frases com supostos sinónimos, mas que deixavam a descoberto um pensamento mais ocidental. Ela dizia que éramos sombras do Deus Brama, ele dizia que sim, que éramos vasos (vessels) que o continham. Não me parece que seja bem a mesma coisa, mas no balanço final, ele disse que se entenderam às mil maravilhas, por isso está tudo bem.

segunda-feira, 16 de julho de 2018

Pode ser que o verdadeiro amor vos encontre no fim

No outro dia, naquele segmento da manhã na Antena 3 em que prescrevem os "audiogésicos", passaram True Love Will Find You In The End, do Daniel Johnston.


Desse momento, retiro duas sensações principais. Uma, um certo sentido de sacralidade dirigido àquela música, que se traduziu num comentário tipo "talvez este tenha sido um audiogésico demasiado forte", como quem diz que coisas sérias e boas como esta não devem passar numa rubrica que costuma ser humorada e bem disposta.
Outra, foi a sensação de terem confiado um segredo precioso a um grupo de pessoas que muito possivelmente nunca tinha sido agraciado com tal presente. Podia-se chegar a pensar que terão melhorado a vida de uns quantos.

Já se percebe que quero conotar aqueles apresentadores de rádio com pensamento religioso. Um cristão aprende desde o início a não usar o nome de Deus em vão, e que as coisas ditas "sagradas" são, acima de tudo exclusivas, dedicadas. E se compreendem que TLWFITE talvez não devesse ser usado uma rubrica humorística, quanto mais um cristão não o compreenderá em relação ao seu Deus?
Por outro lado, estes apresentadores de rádio também têm em si mesmos as ferramentas para não aplicar a cristãos a crítica de quererem "forçar aos outros a sua verdade", pelo menos se eles próprios quiseram partilhar com os outros aquela coisa boa que tinham entre mãos e que muitos desconheciam. "Evangelho" quer dizer boas notícias, e seria uma contradição "amar o próximo", e esconder-lhe as boas notícias em simultâneo. Não dá.

domingo, 4 de março de 2018

II Samuel, Unforgiven

Vi há pouco tempo, pela primeira vez, o Unforgiven. A nível pessoal, só reforça a minha ideia de que o Clint Eastwood é o meu realizador preferido. A outros níveis, que cada um poderá tentar adivinhar quais são se estiver para aí virado, fez-me lembrar o livro da Bíblia de II Samuel, que como tem sido uma leitura recente, levou-me a ver o filme uma segunda vez, para a consolidação, e até talvez deixar aqui umas linhas. Quanto à história do filme, um acto de justiça que fica por fazer motiva uma vingança que desencadeia uma série de eventos muito maiores do que a ofensa original. A coisa descamba tanto, que a vingança desce não apenas sobre os ofensores, mas sobre os vingadores, os vingadores dos vingadores, e os vingadores dos vingadores dos vingadores. Aliás, para proteger os primeiros ofensores de uma vingança à margem da lei, eles chegam até a receber protecção das autoridades.
A história do rei David e Batseba, relatada em II Samuel, é uma das partes da Bíblia que mais me fala, que mais me incomoda. Já a revi mentalmente uma série de vezes. Talvez seja a história bíblica que mais facilmente saberia contar a outra pessoa sem recurso a cábulas. No entanto, para o que aqui importa, é que também é o precursor de uma história de injustiças não lidadas, cada uma alimentando-se das anteriores, cada vez maiores. Na Bíblia, na descrição que faz da história do reino de Israel, aquele pecado “privado” serve para assinalar o início do fim.
Quanto às semelhanças com o filme, num há uma prostituta mutilada, na Bíblia há a violação incestuosa de Amnon a Tamar. A ausência de punição no filme leva ao anúncio de um prémio (à margem da lei) pelas cabeças do mutilador e seu amigo; na Bíblia, um irmão – Absalão – arquitecta uma vingança. No filme, a autoridade do Xerife é posta em causa, e os eventos saem do seu controlo. Na Bíblia, a autoridade de David é posta em causa, e os eventos saem do seu controlo. Nunca tinha reparado bem nisto, que David deixou de ser efectivamente rei durante um período em que o trono foi usurpado por Absalão.
Uma das vertentes das minha convicções cristãs é a importância da justiça. Muitos evangélicos, nas suas teologias pessoais pejadas de apetites pessoais, gostam de argumentar sobre uma primazia do perdão sobre a justiça. Muitas dessas vezes, sinto que o fazem não para elevar o perdão, mas para diminuir a justiça, o que já provocou em mim reacções fortes. Esta parte da Bíblia parece deixar este assunto bem claro. Um acto de injustiça não declarado e não punido, propagou-se ao longo da história e a multidões de pessoas. Se a injustiça não for sequer identificada e nomeada enquanto tal, não haverá sequer qualquer razão para perdões. Nesse sentido, senti uma grande comunhão com as palavras desta semana do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Zeid ibn Ra'ad: vocês estão a ser identificados, as vossas acções estão a ser registadas.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Um episódio com um conhecido de um conhecido de um conhecido do C.S. Lewis

Ontem acabei de ler o Surprised by Joy (numa tradução brasileira, com o título Surpreendido pela Alegria), razão pela qual me sinto com o ímpeto para escrever o pequeno espisódio que se segue, se é que sequer se pode chamar episódio. Antes que algum dia me venha a esquecer dele.
Eu gosto muito dos livros do C.S. Lewis, ao ponto de isso fazer de mim uma espécie de fã, ou adepto do homem. Curiosamente, esta noção convive com outra: que se por alguma razão me tivesse cruzado com o homem, não me teria dado bem com ele. Tenho quase a certeza disso.
Há uns anos atrás, participei num retiro no Canto da Rola, em que o orador era um senhor inglês chamado Richard Goodwin. O objectivo era ele falar sobre o assunto que mais o entusiasma e ocupa, que é o o do aconselhamento. Não é psicologia, não é terapia, é aconselhamento. A figura do conselheiro é, que eu saiba, inexistente em Portugal, o que poderá explicar muita coisa, pelo menos em termos da relação que as pessoas têm consigo mesmas.
Mesmo neste assunto do aconselhamento, que não era propriamente a área de actuação de Lewis, aconteceu citações suas serem evocadas com alguma frequência nos estudos e palestras (first things first, and second things second, é o que mais me vem à mente). Aliás, como acontece amplamente nos mais variados tipos de literatura cristã, sempre que é preciso explicar uma coisa complicada com uma imagem simples, têm tido e terão sempre o bom velho Lewis.
Num dia, no carro a caminho do almoço, fiz do próprio Lewis o assunto da conversa, o suficiente para denunciar a minha admiração pelo homem. Então, o Mr. Goodwin, numa espécie de abébia, decidiu dar um bocado de espaço às segundas coisas durante o tempo daquele retiro. Contou-me que na sua juventude, tinha tido uma professora de piano. Essa professora chamava-se Lucy Barfield. Este apelido não me era estranho. Naturalmente. Ela era filha de um dos grandes amigos de Lewis,  Owen Barfield. Aliás, agora que li o Surprised by Joy, percebo o ascendente que deve ter tido sobre ele, já que do seu círculo de conhecidos, pelo menos na idade adulta, é seguramente o mais referido de todos. Mas não chegasse isso, a própria Lucy é a pessoa em quem é baseada a personagem Lucy Pevensie, a personagem (principal?) das Crónicas de Narnia.
O valor disto tudo é nenhum. Não mais do que o que uma rapariga adolescente nos anos 60 atribuiria a um trapo, se esse trapo tivesse sido rasgado de uma roupa usada por um dos Beatles. Reconheça-se, no entanto, o mérito a um homem que produziu este tipo de admiração nas pessoas com base em livros, e não na sua beleza física, na sua música, ou em como foi promovido por alguma máquina de marketing bem oleada. Ou seja, atribua-se o mérito, mais do que ao homem, aos seus escritos.
Este episódio de conhecimentos de conhecimentos de conhecimentos de uma determinada pessoa faz-me sempre lembrar uma parte do enredo das Crónicas de Nárnia. No livro do guarda-fatos, crianças entram num mundo paralelo através do interior de um guarda-fatos. Mas noutro livro, descobrimos que esse guarda-fatos foi construído com madeira de uma árvore que teve de ser cortada. Essa árvore cresceu depois de ter sido semeado o caroço de um determinado fruto. Esse fruto (que curou uma pessoa de uma doença grave) foi trazido de Nárnia num episódio anterior. Esse fruto foi apanhado de uma árvore especial, que em Nárnia, serve para mais ou menos os mesmos efeitos que a Árvore do Bem e do Mal no Génesis.
E o episódio é isto. É mais um episódio mental do que um episódio histórico.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Blade Runner, distopias, maus sonhos


Esta semana vi pela primeira vez o Blade Runner, e dá para dizer qualquer coisa sobre a experiência de o ver. Já tinha visto umas quantas distopias futuristas, fossem filmes ou animes, e boa parte deles tinham elementos em comum, tão repetitivos que uma pessoa só podia pensar que vinham de uma origem em comum, ou que apontavam para um futuro em comum. Ou ambos (embora a segunda possibilidade perca força estatística se a primeira se verificar). Uma ideia central pairava por aí, à qual os argumentistas tinham aparentes dificuldades em fugir, pegando mais numa ponta, ou mais noutra, mas nunca separando do núcleo da ideia, que julgo - isto parece ser consensual - que terá a ver com a relação entre homem e tecnologia, nomeadamente as fronteiras entre um e outro.
Quando vi aqueles cenários, aqueles temas, aquela sociedade, senti imediatamente que já conhecia aquilo de algum lado. Uma pesquisa rápida entre google e wikipédia confirma: várias dessas distopias foram primordialmente inspiradas por esta história (exemplo mais óbvio: Ghost In The Shell). Outras foram da autoria do mesmo autor, na verdade (por exemplo, Total Recall). E aparentemente, não há precursores do Blade Runner. Desta vez bebi directamente da fonte. É a isto que se chama "arquétipo", não é?

É engraçado que em certo sentido, parece uma encenação daquilo a que o C.S. Lewis chamava de "bons sonhos". As várias religiões dos mais variados lugares continham elementos, como por exemplo, um deus que morre e volta à vida, que seriam uma prefiguração do acontecimento real a acontecer no futuro - que Deus viria à Terra, morreria e ressuscitaria. Tinham saudades de um evento futuro. Quando o Lewis viu o Cristianismo, também lhe cheirou que já conhecia aquilo de algum lado, e que finalmente foi dar à origem. É só que essas religiões sonhariam com o futuro, enquanto que o exemplo de que falo, das distopias, evocaria o passado.

No entanto, eu acho que estas distopias não são só uma evocação do Blade Runner, mas bons palpites para o futuro - e como tal, chamemos-lhes "maus sonhos". O corpo de prova parece apontar para coisas desse género. A tecnologia tem sido sempre mais dominadora do que os seus utilizadores (chamemos-lhe os "utilizados"?), e há ainda grupos de pessoas que parecem gostar dessa ideia, empenhando energia e recursos impressionantes no objectivo de fazer a tecnologia avançar muito para além de qualquer necessidade a ser suprida, e intrometê-la nas esferas mais profundas e íntimas do ser humano. E são estas pessoas que lideram e conduzem o progresso tecnológico.

Pessoalmente, a distopia que considero mais provável será próxima do Matrix. Sim, acho que a coisa passará por ficarmos quietos, com as nossas consciências a existirem num mundo virtual. O software impor-se-á ao hardware. Quando fazia o programa Barnabé, do GBU, lembro-me de conversar com o Manuel Rainho sobre isto. Ele inclinava-se mais para o lado oposto, da biónica. Implantes e melhoramentos robóticos sucessivos, até que não se perceba onde é que a pessoa deixou de ser pessoa para passar a ser máquina. Na altura, a robótica ainda estava muito atrasada; hoje esse cenário já parece mais plausível, e já se fala muito em implantar membros robóticos, ou em usar exoesqueletos, já para não falar nos gadgets que podem ser controlados pelo pensamento, ou em "injectar" imagens directamente no cérebro. Mas ainda assim, eu fico na minha, e acredito que mais cedo ou mais tarde será normal que, em vez de apanhar um meio de transporte para ir para o trabalho, se faça uma ligação a um espaço virtual (com óculos, ou ligando directamente o cabo à espinha como no Matrix) que será o local virtual de trabalho. O trabalho, esse, continuará real. Cá estaremos para ver, e estou certo que os Marks Zuckerbergs deste mundo darão o seu melhor para que isso aconteça.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Um fado invertido

Durante muito tempo, uma das minhas músicas preferidas do Bob Dylan, das poucas que conheço, foi e é Boots of Spanish Leather. E agora, descobri esta, Girl From the North Country, que é parecida em tantos aspectos, da melodia ao assunto, que deve ter sido uma espécie de primeira versão, depois modificada para se tornar Boots of Spanish Leather (desconheço se terá feito uma variação desta música por cada namorada que o largou).



Ambas parecem ser uma espécie de fado invertido. No fado, a mulher espera pelo seu homem que está longe, e permanece à espera custe o que custar, doa a quem doer. O fado exprime esse custo e essa dor. Nestas músicas do Bob Dylan, o rapaz está longe da rapariga e está sem saber se ela ainda conserva os mesmos sentimentos por ele. A música resolve o assunto, encerrando-o para o lado do rapaz. Mas deixando sempre uma mina romântica a ser pisada algum tempo depois, assim se proporcione. Seja um recado de comprar botas, seja uma mensagem através de terceiros que vão à feira, o recurso está lá. Ou seja, o rapaz resolve a coisa mal resolvida. O rapaz é o "romântico incurável". No meu mundo, tudo bate certo. Não seria de esperar que fosse o rapaz a acabar competente e eficazmente com uma ligação amorosa.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

As elites no The Post

Já li críticas e comentários ao The Post de três ou quatro jornais diferentes, e todos eles tinham uma parte em que relacionavam o episódio dos anos 70 com o tempo actual. Mas nenhum deles o fez da maneira que me ocorreu.

Talvez seja preciso relembrar que o diagnóstico que se tem feito à emergência do populismo actual aponta para uma reacção forte ao predomínio de uma elite cultural, que nominalmente, até pode advogar o apoio às camadas mais baixas de sociedade, mas na essência esqueceu-as nas suas reivindicações, e até do quanto depende delas (isto vê-se a cada vez que alguém defende que o país pode prescindir do trabalho mais braçal da indústria ou da agropecuária, em troco de economia de serviços, para pessoas mais “qualificadas” ). E tudo isto acontece sob a legitimidade de uma superioridade moral e intelectual – eles sim os mais qualificados - que lhes permite decidir sobre o destino dos outros, mesmo que seja em experiências sociais cujas consequências negativas não os afectarão, mas apenas os méritos se os houver. Na Europa, chama-se a isto “esquerda caviar”; nos Estados Unidos, acho que o papel foi assumido pelo que lá chamam de “liberais”.

Pois eis no The Post uma representação dessa elite, um grupo alargado de amigos que têm em comum as suas posições de poder ou de influência, que jantam uns com os outros e ao serão falam dos membros do Governo que se fossem os vizinhos do lado, e da governança como se fossem planos para o fim-de-semana que vem. E surge o escândalo dos Pentagon Papers, que mancha um dos amigos da proprietária (Kay) de um jornal (Washington Post). E na esfera superior em que estas duas pessoas encontram, a decisão de publicar ou não publicar foi ponderada, em primeiro lugar dos acontecimentos, à luz da amizade que os unia. A redenção de Kay ao longo do filme começa por relativizar este entrave por comparação com outras coisas bem mais importantes, como se pessoas morrem numa guerra destinada a ser perdida em nome de coisa nenhuma que não eleitoralismo. Outros entraves vão surgindo, como o futuro financeiro do seu jornal, e até a possibilidade de prisão. 

Uma das lições do filme é que aquela elite social não era possível. Aquelas pessoas não podiam ser amigas, nos moldes daquilo a que normalmente chamamos amizade, sem que isso fosse moralmente reprovável. Os interesses eram demasiado opostos, e se o choque não exisistisse, é porque uns estavam a servir-se dos outros – no caso, a classe política estava a beneficiar de protecção mediática através da próximidade com membros influentes da imprensa.



À medida que a redenção de Kay se concretiza, é possível vê-la na sua empresa – o Washignton Post – numa descida à realidade, em locais cada vez mais inferiores na hierarquia e na importância do jornal, quando durante quase todo o filme só a tínhamos visto em casa, em restaurantes ou em salas de reunião. Perto do fim do filme, surge no reboliço da redacção – chega a levar um encontrão de uma funcionária apressada – onde as notícias são feitas. No fim do filme, desce ainda mais baixo até à tipografia, onde se trabalha com as mãos, a juntar pacientemente os caracteres que darão origem ao texto do jornal. É desta maneira que a vemos a redescobrir o jornal cuja sobrevivência conquistou. O jornal enquanto conjunto de pessoas que dependem umas das outras. Talvez enquanto se convencia que teria de mudar de companhias, nomeadamente, estar mais aquelas pessoas que sustentam o seu jornal, e como tal, a possibilidade de exercer os seus valores através dele.

domingo, 21 de janeiro de 2018

Porque é que a pregação estava errada - 2018-01-21

Na parede estava projectado "Deus omnisciente". Abrimos no Salmo 139, para ler a primeira metade, até ao versículo 12. Segue-se uma curta explicação do Pastor, qualquer coisa como que como Deus sabe todas as coisas, é como se estivesse em todo o lado. E assim sendo, prosseguiu enumerando uma série de atributos de Deus, deste texto e de outros que foram mencionados, que remetiam sempre para a omnipresença, e não a omnisciência, de Deus. Mas claro, atributos esses que foram equiparados logo no início. Essa foi a premissa que daria algum sentido ao que se passou.

Pode ter sido um teste à atenção das pessoas, a ver se no fim do culto, alguém ia queixar-se ao Pastor. Pior, pode ter sido que a pregação tenha sido prepararada a pensar em "omnipresença", mas por lapso, no powerpoint, ficou escrito "Deus omnisciente" em vez de "Deus omnipresente", e isso foi corrigido, não com uma confissão do lapso, mas com uma consideração teológica de alto nível. É semelhante ao que George Bush, numa entrevista acerca da estratégia para o Afeganistão, dizia ser usar misseis de milhões de dólares para acertar em camelos. Equiparar omnipresença com omnisciência para disfarçar um erro de escrita no powerpoint é equiparável a esta consideração de Bush.

Mas vou assumir que foi movido por convicção que o Pastor da minha igreja orientou a pregação neste sentido: pregar sobre a omnisciência de Deus, equiparando-a à Sua omnipresença, e usando como texto bíblico base Salmos 139:1-12, para vincar que Deus está connosco em todos os momentos e lugares (sobretudo dos versículo 7 a 12). Nesse caso, acho que foi um desperdício ter lido apenas o início, porque o texto tem as suas próprias intenções e ênfases, e são melhor percebidas lendo-o até ao fim. Consigo identificar umas quantas, que vou enumerar de seguida. Quase todas elas apontam para o Deus pessoal e que se relaciona connosco. E para além disso, não menos importante, aproximam-se mais da ideia básica e da ortodoxia cristã que defende que Deus tem três atributos, de omnisciência, omnipresença e omnipotência, que são distintos entre si, apontam para direcções diferentes. Estas descrições dos atributos de Deus são úteis para enriquecer a nossa compreensão Dele; pessoalmente, julgo que misturá-los obscurece a nossa compreensão, e potencialmente, pode contribuir para iniciar as pessoas no processo de pensar que Deus "é tudo", coisa que já não faz parte da ortodoxia cristã, mas sim de outras ortodoxias.

Sobre a omnisciência de Deus, pegando no texto da pregação e alargando-o a todo o capítulo 139, encontro as seguintes ênfases.

1. Deus conhece a nossa história pessoal. De onde viémos e para onde vamos. Conhece os acontecimentos marcantes da nossa vida. Acontecimentos que podem ter sido causa de outros acontecimentos, e ter tido efeitos sobre nós, sobre a nossa personalidade e a nossa compreensão das coisas. Se alguém acha que teve uma infância difícil, Deus sabe isso. Se houve um episódio traumático, Deus sabe isso. Se cometemos erros, Deus sabe isso. Se o servimos bem, Deus sabe isso. Deus compreende-nos também desta maneira.

2. Deus conhece o nosso interior, o que suponho que inclua pensamentos, intenções, raciocínios. Sei lá, o nosso mundo interior é vasto. As implicações disto são tantas. Por exemplo, que podemos enganar toda a gente com as nossas máscaras sociais, mas Deus não vai nessa. Que podemos prestar contas às pessoas pelas mentiras que dizemos, mas Deus conhece até as mentiras que impomos as nós mesmos. Que podemos ser hipócritas com pessoas, mas não com Deus – do seu ponto vista, as nossas segundas intenções aparecem em primeiro. Deus sabe quando nos esforçamos. Deus sabes quando não quisemos ofender alguém. Deus conhece as nossas preocupações e tristezas.

3. Qual é a nossa reacção a esta "ausência de privacidade"? Conforto ou desconforto? Parece-nos desejável ou indesejável? Para um ateu típico, é frequente comparar a descrição de Deus à de um estado totalitário, com direitos abusivos e perversos sobre os seus súbditos. Chegam a descrever Deus como um voyeur. No caso do salmista, ele pede a Deus que exerça este atributo sobre ele: "sonda-me , ó Deus, e conhece o meu coração: prova-me, e conhece os meus pensamentos".

4. Deus sabe tudo o que acontece. Isto quer dizer que mesmo que aconteça no desconhecimento de todos, a injustiça continua a ser igualmente injusta aos olhos de Deus, e é n'Ele que o salmista espera por justiça. Mesmo que as transgressões sejam aparentemente coisas inofensivas para as pessoas (falar mal de Deus, usar o seu nome em vão) não são menos injustas por isso, e não deixam de ser contadas como tal.

5. Uma possibilidade de aplicação seria na linha de: Como é que nos vamos dar a conhecer aos outros. Da forma que Deus nos conhece, ou enfeitados com as máscaras através das quais Deus passa através sem esforço? Porque é que as usamos? Quais usamos?

No tempo de louvor, leu-se uma parte do Salmo 51, e a minha atenção desviou-se para o v.6, porque estava sublinhado.

"Eis que amas a verdade no íntimo e no oculto me fazes conhecer a sabedoria".

Teria sido um bom versículo para encerrar uma pregação sobre a omnisciência de Deus.

sábado, 13 de janeiro de 2018

God... Fuck...



Quando fizeram este filme, suponho que tenham decidido na sua preparação que o seu único personagem não seria pessoa de falar sozinho. É impossível não reconhecer que, nas desventuras deste enredo, eu enquanto eu mesmo teria falado muito, mas muito mesmo, quer estivesse sozinho ou acompanhado, ou até mais se sozinho do que acompanhado. Eu fico muitas vezes a trabalhar depois da hora, sozinho, e qualquer câmara de vigilância confirmaria o que digo.
Mas o personagem do filme é calado, e o espectador fica em suspenso: qual é o azar que vai obrigar o homem a suspirar umas palavritas. Os próprios argumentistas deverão ter pensado nisto. O que é o que o vai fazer falar, e nesse momento, o que é que ele vai dizer?
Por fim, o azar de tal dimensão acontece, em parte por distracção. E ele lamenta: God... Fuck (Deus... foda-se).
Eu acho que foram palavras bem escolhidas, na medida em que representam duas opções sempre presentes na angústia. Quando se está em situações limite, em que não se sabe para onde nem para quem virar - quando tudo está perdido - duas possibilidade acabarão por se apresentar como solução: o Bem, a elevação, a inteligência, o amor, Deus, ou o Mal, a escuridão, a brutalidade, o medo, o Diabo. Pode assumir muitas formas, mas pelo menos eu, e sobretudo no trabalho, que tem sido muito dominante sobre mim nos últimos anos, sinto que tenho que dar a volta por cima, ou dar a volta por baixo. Já o fiz das duas maneiras, mantendo sempre que o Bem é preferível ao Mal, e que a opção pelo Mal não deve ser encarada nem como uma nova versão do Bem, nem como uma alternativa de igual valor, mas como um Mal necessário, dadas as opções em dado momento.
Porque tenho consciência disto, naturalmente perdi bastante triunfalismo na minha fé cristã. Eu afirmá-la-ia triunfalmente se tivesse uma experiência continuada de opção pelo Bem como resposta aos problemas com que me tivesse deparado. Mas não sucedeu assim.
Por outro lado, o que ainda dá sentido a isto tudo é que aquilo a que tradicionalmente designamos Bem ou Mal, seguramente não o serão aos olhos de Deus, que são os olhos que importam. O caso mais óbvio é o da ira, que até figura na lista dos sete pecados mortais (que enquanto evangélico, desvalorizo e rejeito sem meias medidas) e que como tal, descreveria a purificação do Templo que Jesus fez como um acto pecaminoso. No entanto é só um comportamento natural do mesmo indivíduo que antes tinha dito "bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça".
E sim, quando protesto sozinho no trabalho já muito para além da hora de saída contra todos aqueles azares, problemas e descoordenações, também são essas a palavras que mais suspiro - God, fuck. Só que em português, claro.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

A minha fé não é sofista

"(...) ou seja eu ou sejam eles, assim pregamos, e assim haveis crido."

Eu gosto muito que a fé em que creio tenha o seu Livro povoado, aqui e ali, desta sentenças anti-sofistas, e que como tal, sustente uma cosmovisão razoavelmente racionalista. A ressurreição de Jesus foi um episódio histórico, e isso pode ser verificado através de centenas de testemunhas oculares que, naquele tempo, ainda eram vivas e capazes de descreverem aquilo que viram e experimentaram em momentos e lugares diferentes. E como tal, a mensagem que brota da vida de Jesus não pode ser diversificada em todas as direcções e mais algumas, nem faria sentido, se a mensagem que os apóstolos anunciaram foi produto dessa mesma experiência comum. Por mais que "dependa do observador", nunca pode depender assim tanto que se desprenda da origem. E com que critério verificamos? Fácil, por exemplo, acontece que "ou seja eu ou sejam eles, assim pregamos, e assim haveis crido".