domingo, 4 de março de 2018

II Samuel, Unforgiven

Vi há pouco tempo, pela primeira vez, o Unforgiven. A nível pessoal, só reforça a minha ideia de que o Clint Eastwood é o meu realizador preferido. A outros níveis, que cada um poderá tentar adivinhar quais são se estiver para aí virado, fez-me lembrar o livro da Bíblia de II Samuel, que como tem sido uma leitura recente, levou-me a ver o filme uma segunda vez, para a consolidação, e até talvez deixar aqui umas linhas. Quanto à história do filme, um acto de justiça que fica por fazer motiva uma vingança que desencadeia uma série de eventos muito maiores do que a ofensa original. A coisa descamba tanto, que a vingança desce não apenas sobre os ofensores, mas sobre os vingadores, os vingadores dos vingadores, e os vingadores dos vingadores dos vingadores. Aliás, para proteger os primeiros ofensores de uma vingança à margem da lei, eles chegam até a receber protecção das autoridades.
A história do rei David e Batseba, relatada em II Samuel, é uma das partes da Bíblia que mais me fala, que mais me incomoda. Já a revi mentalmente uma série de vezes. Talvez seja a história bíblica que mais facilmente saberia contar a outra pessoa sem recurso a cábulas. No entanto, para o que aqui importa, é que também é o precursor de uma história de injustiças não lidadas, cada uma alimentando-se das anteriores, cada vez maiores. Na Bíblia, na descrição que faz da história do reino de Israel, aquele pecado “privado” serve para assinalar o início do fim.
Quanto às semelhanças com o filme, num há uma prostituta mutilada, na Bíblia há a violação incestuosa de Amnon a Tamar. A ausência de punição no filme leva ao anúncio de um prémio (à margem da lei) pelas cabeças do mutilador e seu amigo; na Bíblia, um irmão – Absalão – arquitecta uma vingança. No filme, a autoridade do Xerife é posta em causa, e os eventos saem do seu controlo. Na Bíblia, a autoridade de David é posta em causa, e os eventos saem do seu controlo. Nunca tinha reparado bem nisto, que David deixou de ser efectivamente rei durante um período em que o trono foi usurpado por Absalão.
Uma das vertentes das minha convicções cristãs é a importância da justiça. Muitos evangélicos, nas suas teologias pessoais pejadas de apetites pessoais, gostam de argumentar sobre uma primazia do perdão sobre a justiça. Muitas dessas vezes, sinto que o fazem não para elevar o perdão, mas para diminuir a justiça, o que já provocou em mim reacções fortes. Esta parte da Bíblia parece deixar este assunto bem claro. Um acto de injustiça não declarado e não punido, propagou-se ao longo da história e a multidões de pessoas. Se a injustiça não for sequer identificada e nomeada enquanto tal, não haverá sequer qualquer razão para perdões. Nesse sentido, senti uma grande comunhão com as palavras desta semana do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Zeid ibn Ra'ad: vocês estão a ser identificados, as vossas acções estão a ser registadas.

Sem comentários:

Enviar um comentário