terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Não maltratem as certezas




Eis um ramo de pensamento que a mim me amedronta: que a certeza começa guerras, que acabamos por impor aos outros aquilo que acreditamos ser verdade.
Eu gostei muito desta entrevista em comparação com a qual, quase tudo o que se ouve neste segmento do programa parece um monte de banalidades papagaiadas sem se pensar muito nisso, sem custar muito a quem o diz.
Mas retive este momento, porque é uma afirmação forte, que acredito que represente o pensamento mais genuíno e sincero de muitas pessoas.
Uma das coisas que mais me inquietou durante o Silêncio foi precisamente que no seu retrato dos cristãos, em nenhum momento houve uma tentativa de organizar uma rebelião, ou sequer uma fuga do país. Não sei se isto corresponde à verdade histórica, mas vou supor que sim. Temos os cristãos, dogmáticos nas suas crenças, a morrerem sem qualquer hipótese de sequer exprimir a sua fé - as suas certezas - e os seus perseguidores, budistas e como tal, relativistas em vários aspectos, a imporem a sua regra pelo uso da força. Não que tivessem uma verdade central a impor, mas apenas pela possibilidade de serem expostos a uma ideia considerada "perigosa" - perigosamente contrária às suas. Esta "não-certeza" violenta seria algo sobre a qual perguntaria a opinião de Andrew Garfield, porque parece virar de pernas para o ar a sua afirmação.


Por outro lado, nesta fase em que tudo justifica a eleição de Trump - e quase todas as justificações me parecem acertadas - também perguntaria se o momento que vivemos não foi produzido por um vazio criado por uma série de certezas que foram derrubadas ou pelo menos desgastadas sem que se tenham encontrado substitutos à altura. Será que certezas testadas, fortes e respeitadas, não nos teriam impedido de cair no meio deste vendaval? E será que a nossa possível sobrevivência a este tempo não será conseguida à custar de encontrar as certezas que ainda restam, algumas das quais que já julgávamos perdidas?
Não saber relacionar com a certeza não devia implicar demonizar a certeza. Esta parece-me sim uma das ideias mais perigosas de entre a oferta disponível.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Uma biologia da solidão

Eu sou pessoa de trautear. Esteja ou não a fazê-lo, trago quase sempre alguma música na cabeça, e não exprimi-lo trauteando, assobiando, tamborilando num objecto qualquer - para não perturbar os outros - é um acto de contenção. Quando estou no trabalho e por alguma razão me apanho sozinho na sala, imediatamente começo a fazer barulhos assim que a última pessoa a sair fecha a porta.
Como estamos de costas uns para os outros, estou constantemente habilitado a passar pelo embaraço de, sei lá, desatar a cantar despreocupadamente uma das foleirices da minha banda sonora mental, naquela sala consagrada ao fabrico de electrodos, quando afinal ainda estava um colega a um canto que eu não tinha reparado.
Nunca aconteceu. De tempos a tempos, penso nisto. Que ao longo de tantos anos, tal coisa nunca aconteceu mesmo quando seria tão provável de acontecer. É como se um sentido pouco falível detectasse um vibração específica presente no ar e informasse inconscientemente "estás sozinho e passas despercebido, faz como bem entenderes". Como se fosse possível propor uma biologia da solidão, na qual o corpo reagisse ao estímulo de estar sozinho de uma maneira própria, que de outro modo não seria possível. Da mesma maneira que certas aves comportam-se de maneira auto-destrutiva no cativeiro, ou os seres humanos aguentam mais tempo sem respirar se estiverem debaixo de água. Talvez este mecanismo pudesse ser accionado de formas artificiais. Talvez servisse até para explicar que pessoas mais desinibidas se vêem mais sozinhas no mundo, sem nunca darem por isso.