domingo, 4 de fevereiro de 2018

Um episódio com um conhecido de um conhecido de um conhecido do C.S. Lewis

Ontem acabei de ler o Surprised by Joy (numa tradução brasileira, com o título Surpreendido pela Alegria), razão pela qual me sinto com o ímpeto para escrever o pequeno espisódio que se segue, se é que sequer se pode chamar episódio. Antes que algum dia me venha a esquecer dele.
Eu gosto muito dos livros do C.S. Lewis, ao ponto de isso fazer de mim uma espécie de fã, ou adepto do homem. Curiosamente, esta noção convive com outra: que se por alguma razão me tivesse cruzado com o homem, não me teria dado bem com ele. Tenho quase a certeza disso.
Há uns anos atrás, participei num retiro no Canto da Rola, em que o orador era um senhor inglês chamado Richard Goodwin. O objectivo era ele falar sobre o assunto que mais o entusiasma e ocupa, que é o o do aconselhamento. Não é psicologia, não é terapia, é aconselhamento. A figura do conselheiro é, que eu saiba, inexistente em Portugal, o que poderá explicar muita coisa, pelo menos em termos da relação que as pessoas têm consigo mesmas.
Mesmo neste assunto do aconselhamento, que não era propriamente a área de actuação de Lewis, aconteceu citações suas serem evocadas com alguma frequência nos estudos e palestras (first things first, and second things second, é o que mais me vem à mente). Aliás, como acontece amplamente nos mais variados tipos de literatura cristã, sempre que é preciso explicar uma coisa complicada com uma imagem simples, têm tido e terão sempre o bom velho Lewis.
Num dia, no carro a caminho do almoço, fiz do próprio Lewis o assunto da conversa, o suficiente para denunciar a minha admiração pelo homem. Então, o Mr. Goodwin, numa espécie de abébia, decidiu dar um bocado de espaço às segundas coisas durante o tempo daquele retiro. Contou-me que na sua juventude, tinha tido uma professora de piano. Essa professora chamava-se Lucy Barfield. Este apelido não me era estranho. Naturalmente. Ela era filha de um dos grandes amigos de Lewis,  Owen Barfield. Aliás, agora que li o Surprised by Joy, percebo o ascendente que deve ter tido sobre ele, já que do seu círculo de conhecidos, pelo menos na idade adulta, é seguramente o mais referido de todos. Mas não chegasse isso, a própria Lucy é a pessoa em quem é baseada a personagem Lucy Pevensie, a personagem (principal?) das Crónicas de Narnia.
O valor disto tudo é nenhum. Não mais do que o que uma rapariga adolescente nos anos 60 atribuiria a um trapo, se esse trapo tivesse sido rasgado de uma roupa usada por um dos Beatles. Reconheça-se, no entanto, o mérito a um homem que produziu este tipo de admiração nas pessoas com base em livros, e não na sua beleza física, na sua música, ou em como foi promovido por alguma máquina de marketing bem oleada. Ou seja, atribua-se o mérito, mais do que ao homem, aos seus escritos.
Este episódio de conhecimentos de conhecimentos de conhecimentos de uma determinada pessoa faz-me sempre lembrar uma parte do enredo das Crónicas de Nárnia. No livro do guarda-fatos, crianças entram num mundo paralelo através do interior de um guarda-fatos. Mas noutro livro, descobrimos que esse guarda-fatos foi construído com madeira de uma árvore que teve de ser cortada. Essa árvore cresceu depois de ter sido semeado o caroço de um determinado fruto. Esse fruto (que curou uma pessoa de uma doença grave) foi trazido de Nárnia num episódio anterior. Esse fruto foi apanhado de uma árvore especial, que em Nárnia, serve para mais ou menos os mesmos efeitos que a Árvore do Bem e do Mal no Génesis.
E o episódio é isto. É mais um episódio mental do que um episódio histórico.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Blade Runner, distopias, maus sonhos


Esta semana vi pela primeira vez o Blade Runner, e dá para dizer qualquer coisa sobre a experiência de o ver. Já tinha visto umas quantas distopias futuristas, fossem filmes ou animes, e boa parte deles tinham elementos em comum, tão repetitivos que uma pessoa só podia pensar que vinham de uma origem em comum, ou que apontavam para um futuro em comum. Ou ambos (embora a segunda possibilidade perca força estatística se a primeira se verificar). Uma ideia central pairava por aí, à qual os argumentistas tinham aparentes dificuldades em fugir, pegando mais numa ponta, ou mais noutra, mas nunca separando do núcleo da ideia, que julgo - isto parece ser consensual - que terá a ver com a relação entre homem e tecnologia, nomeadamente as fronteiras entre um e outro.
Quando vi aqueles cenários, aqueles temas, aquela sociedade, senti imediatamente que já conhecia aquilo de algum lado. Uma pesquisa rápida entre google e wikipédia confirma: várias dessas distopias foram primordialmente inspiradas por esta história (exemplo mais óbvio: Ghost In The Shell). Outras foram da autoria do mesmo autor, na verdade (por exemplo, Total Recall). E aparentemente, não há precursores do Blade Runner. Desta vez bebi directamente da fonte. É a isto que se chama "arquétipo", não é?

É engraçado que em certo sentido, parece uma encenação daquilo a que o C.S. Lewis chamava de "bons sonhos". As várias religiões dos mais variados lugares continham elementos, como por exemplo, um deus que morre e volta à vida, que seriam uma prefiguração do acontecimento real a acontecer no futuro - que Deus viria à Terra, morreria e ressuscitaria. Tinham saudades de um evento futuro. Quando o Lewis viu o Cristianismo, também lhe cheirou que já conhecia aquilo de algum lado, e que finalmente foi dar à origem. É só que essas religiões sonhariam com o futuro, enquanto que o exemplo de que falo, das distopias, evocaria o passado.

No entanto, eu acho que estas distopias não são só uma evocação do Blade Runner, mas bons palpites para o futuro - e como tal, chamemos-lhes "maus sonhos". O corpo de prova parece apontar para coisas desse género. A tecnologia tem sido sempre mais dominadora do que os seus utilizadores (chamemos-lhe os "utilizados"?), e há ainda grupos de pessoas que parecem gostar dessa ideia, empenhando energia e recursos impressionantes no objectivo de fazer a tecnologia avançar muito para além de qualquer necessidade a ser suprida, e intrometê-la nas esferas mais profundas e íntimas do ser humano. E são estas pessoas que lideram e conduzem o progresso tecnológico.

Pessoalmente, a distopia que considero mais provável será próxima do Matrix. Sim, acho que a coisa passará por ficarmos quietos, com as nossas consciências a existirem num mundo virtual. O software impor-se-á ao hardware. Quando fazia o programa Barnabé, do GBU, lembro-me de conversar com o Manuel Rainho sobre isto. Ele inclinava-se mais para o lado oposto, da biónica. Implantes e melhoramentos robóticos sucessivos, até que não se perceba onde é que a pessoa deixou de ser pessoa para passar a ser máquina. Na altura, a robótica ainda estava muito atrasada; hoje esse cenário já parece mais plausível, e já se fala muito em implantar membros robóticos, ou em usar exoesqueletos, já para não falar nos gadgets que podem ser controlados pelo pensamento, ou em "injectar" imagens directamente no cérebro. Mas ainda assim, eu fico na minha, e acredito que mais cedo ou mais tarde será normal que, em vez de apanhar um meio de transporte para ir para o trabalho, se faça uma ligação a um espaço virtual (com óculos, ou ligando directamente o cabo à espinha como no Matrix) que será o local virtual de trabalho. O trabalho, esse, continuará real. Cá estaremos para ver, e estou certo que os Marks Zuckerbergs deste mundo darão o seu melhor para que isso aconteça.