sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

As elites no The Post

Já li críticas e comentários ao The Post de três ou quatro jornais diferentes, e todos eles tinham uma parte em que relacionavam o episódio dos anos 70 com o tempo actual. Mas nenhum deles o fez da maneira que me ocorreu.

Talvez seja preciso relembrar que o diagnóstico que se tem feito à emergência do populismo actual aponta para uma reacção forte ao predomínio de uma elite cultural, que nominalmente, até pode advogar o apoio às camadas mais baixas de sociedade, mas na essência esqueceu-as nas suas reivindicações, e até do quanto depende delas (isto vê-se a cada vez que alguém defende que o país pode prescindir do trabalho mais braçal da indústria ou da agropecuária, em troco de economia de serviços, para pessoas mais “qualificadas” ). E tudo isto acontece sob a legitimidade de uma superioridade moral e intelectual – eles sim os mais qualificados - que lhes permite decidir sobre o destino dos outros, mesmo que seja em experiências sociais cujas consequências negativas não os afectarão, mas apenas os méritos se os houver. Na Europa, chama-se a isto “esquerda caviar”; nos Estados Unidos, acho que o papel foi assumido pelo que lá chamam de “liberais”.

Pois eis no The Post uma representação dessa elite, um grupo alargado de amigos que têm em comum as suas posições de poder ou de influência, que jantam uns com os outros e ao serão falam dos membros do Governo que se fossem os vizinhos do lado, e da governança como se fossem planos para o fim-de-semana que vem. E surge o escândalo dos Pentagon Papers, que mancha um dos amigos da proprietária (Kay) de um jornal (Washington Post). E na esfera superior em que estas duas pessoas encontram, a decisão de publicar ou não publicar foi ponderada, em primeiro lugar dos acontecimentos, à luz da amizade que os unia. A redenção de Kay ao longo do filme começa por relativizar este entrave por comparação com outras coisas bem mais importantes, como se pessoas morrem numa guerra destinada a ser perdida em nome de coisa nenhuma que não eleitoralismo. Outros entraves vão surgindo, como o futuro financeiro do seu jornal, e até a possibilidade de prisão. 

Uma das lições do filme é que aquela elite social não era possível. Aquelas pessoas não podiam ser amigas, nos moldes daquilo a que normalmente chamamos amizade, sem que isso fosse moralmente reprovável. Os interesses eram demasiado opostos, e se o choque não exisistisse, é porque uns estavam a servir-se dos outros – no caso, a classe política estava a beneficiar de protecção mediática através da próximidade com membros influentes da imprensa.



À medida que a redenção de Kay se concretiza, é possível vê-la na sua empresa – o Washignton Post – numa descida à realidade, em locais cada vez mais inferiores na hierarquia e na importância do jornal, quando durante quase todo o filme só a tínhamos visto em casa, em restaurantes ou em salas de reunião. Perto do fim do filme, surge no reboliço da redacção – chega a levar um encontrão de uma funcionária apressada – onde as notícias são feitas. No fim do filme, desce ainda mais baixo até à tipografia, onde se trabalha com as mãos, a juntar pacientemente os caracteres que darão origem ao texto do jornal. É desta maneira que a vemos a redescobrir o jornal cuja sobrevivência conquistou. O jornal enquanto conjunto de pessoas que dependem umas das outras. Talvez enquanto se convencia que teria de mudar de companhias, nomeadamente, estar mais aquelas pessoas que sustentam o seu jornal, e como tal, a possibilidade de exercer os seus valores através dele.

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