segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Uma biologia da solidão

Eu sou pessoa de trautear. Esteja ou não a fazê-lo, trago quase sempre alguma música na cabeça, e não exprimi-lo trauteando, assobiando, tamborilando num objecto qualquer - para não perturbar os outros - é um acto de contenção. Quando estou no trabalho e por alguma razão me apanho sozinho na sala, imediatamente começo a fazer barulhos assim que a última pessoa a sair fecha a porta.
Como estamos de costas uns para os outros, estou constantemente habilitado a passar pelo embaraço de, sei lá, desatar a cantar despreocupadamente uma das foleirices da minha banda sonora mental, naquela sala consagrada ao fabrico de electrodos, quando afinal ainda estava um colega a um canto que eu não tinha reparado.
Nunca aconteceu. De tempos a tempos, penso nisto. Que ao longo de tantos anos, tal coisa nunca aconteceu mesmo quando seria tão provável de acontecer. É como se um sentido pouco falível detectasse um vibração específica presente no ar e informasse inconscientemente "estás sozinho e passas despercebido, faz como bem entenderes". Como se fosse possível propor uma biologia da solidão, na qual o corpo reagisse ao estímulo de estar sozinho de uma maneira própria, que de outro modo não seria possível. Da mesma maneira que certas aves comportam-se de maneira auto-destrutiva no cativeiro, ou os seres humanos aguentam mais tempo sem respirar se estiverem debaixo de água. Talvez este mecanismo pudesse ser accionado de formas artificiais. Talvez servisse até para explicar que pessoas mais desinibidas se vêem mais sozinhas no mundo, sem nunca darem por isso.

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